A nova regulamentação do mercado de criptoativos, recém-publicada pelo Banco Central, inaugura uma era de maior segurança e integração, mas cobra um preço alto: o fim do pseudonimato para investidores que prezam pela autocustódia. A partir de 2026, cada saque de uma corretora para uma carteira pessoal será um ponto em um novo e vasto mapa de vigilância financeira.
Desde a sua concepção, o Bitcoin e o ecossistema de criptoativos carregam em seu DNA a promessa de um sistema financeiro alternativo, descentralizado e, crucialmente, privado. A máxima “se as chaves não são suas, as moedas não são suas” tornou-se um mantra para investidores que buscam soberania sobre seus próprios ativos, utilizando carteiras de autocustódia (hardware wallets como Ledger e Trezor, ou software como MetaMask) para se protegerem de falências de corretoras e do alcance direto de reguladores.
Contudo, essa era de relativa privacidade está com os dias contados no Brasil. No abrangente pacote regulatório divulgado em 10 de novembro, a Resolução BCB nº 521 estabeleceu uma diretriz que atinge o coração da privacidade dos usuários: a obrigatoriedade de identificação do proprietário de carteiras de autocustódia em todas as operações de saque e depósito.
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Até então, a dinâmica era comparável a um saque bancário em espécie. O investidor comprava seus ativos em uma corretora (a “casa de câmbio” digital) e, ao transferi-los para sua carteira pessoal, a instituição registrava a saída. Dali em diante, porém, o rastro se tornava difuso.
O que o investidor fazia com aqueles ativos em sua posse — transações peer-to-peer, uso em protocolos de finanças descentralizadas (DeFi) ou simples armazenamento — permanecia em uma esfera de pseudonimato, visível na blockchain, mas sem uma conexão direta e formal com seu CPF.
Essa dinâmica muda completamente a partir de 4 de maio de 2026, data em que as Sociedades Prestadoras de Serviços de Ativos Virtuais (SPSAVs), novo nome para as corretoras licenciadas, passarão a reportar mensalmente suas operações ao Banco Central.
O texto da Resolução 521 é inequívoco ao determinar que, em transferências para carteiras de autocustódia, a SPSAV “deve identificar o proprietário da carteira autocustodiada e manter processos documentados para verificar a origem e o destino dos ativos virtuais”.
Na prática, o que isso significa?
Significa que a ponte entre o sistema financeiro tradicional e o ecossistema de autocustódia, antes uma via de mão única em termos de rastreabilidade, agora se torna uma via de mão dupla totalmente monitorada. Ao solicitar um saque de Bitcoin para sua Ledger, o usuário terá que declarar formalmente à corretora que aquele endereço de destino é de sua propriedade. A corretora, por sua vez, registrará essa associação — CPF do cliente com o endereço da carteira — e enviará essa informação ao regulador.
O resultado é a criação de um gigantesco mapa de ativos, um cadastro nacional de carteiras de criptomoedas vinculadas a seus proprietários. Para o Banco Central, a justificativa é clara e alinhada às diretrizes globais do GAFI (Grupo de Ação Financeira): fechar o cerco contra a lavagem de dinheiro, o financiamento ao terrorismo e outras atividades ilícitas que se aproveitavam do pseudonimato da rede.
“Tudo isso vai reduzir o espaço para golpes, para fraudes e para uso desse mercado para lavagem de dinheiro”, afirmou Gilneu Vivan, diretor de Regulação do Banco Central, em comunicado sobre as novas regras. A lógica do regulador é que, ao monitorar os pontos de entrada e saída do ecossistema, é possível rastrear fluxos de capital suspeitos com muito mais eficácia.
Para o investidor, no entanto, as implicações são profundas. A primeira e mais óbvia é a perda da privacidade financeira. A decisão de manter ativos fora do sistema tradicional, muitas vezes motivada pelo desejo de confidencialidade, perde grande parte de seu propósito quando o próprio regulador passa a ter um registro detalhado de seus bens digitais.
Especialistas apontam que essa medida pode ter consequências secundárias. Com um mapa claro de quem possui o quê e onde, o governo ganha uma ferramenta poderosa para futuras ações de fiscalização e tributação. Embora a Receita Federal já exija a declaração de criptoativos no Imposto de Renda, a verificação e o cruzamento de dados se tornam exponencialmente mais simples com os relatórios fornecidos diretamente pelas corretoras.
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Outro ponto de atrito será o aumento da burocracia. Processos de saque, que antes levavam minutos, podem se tornar mais complexos, exigindo etapas adicionais de verificação de identidade e propriedade do endereço de destino. O uso de ferramentas que visam aumentar a privacidade, como os “mixers” de criptomoedas, pode se tornar extremamente arriscado, potencialmente levando ao bloqueio de contas por suspeita de atividade ilícita.
O mercado brasileiro de criptoativos entra, portanto, em um novo capítulo. A integração com o sistema financeiro tradicional, que traz consigo a promessa de maior segurança e maturidade, exige como contrapartida uma concessão significativa de privacidade. Para o investidor que via nas criptomoedas uma alternativa ao sistema financeiro vigente, a mensagem do Banco Central é clara: bem-vindo ao sistema. Você pode ter suas chaves, mas nós teremos seu endereço.
A comparação internacional e o dilema da privacidade
A medida brasileira não é isolada. Ela se insere em um movimento global de reguladores que buscam fechar as brechas que permitiam o uso de criptoativos para atividades ilícitas.
O GAFI, organização internacional que define padrões globais de combate à lavagem de dinheiro, recomenda há anos a implementação da chamada “Travel Rule”, que exige que as informações sobre o remetente e o destinatário “viajem” junto com a transação de criptoativos, de forma similar ao que ocorre no sistema bancário tradicional.
A União Europeia, com seu recente regulamento MiCA (Markets in Crypto-Assets), também caminha na direção de maior monitoramento de transações envolvendo carteiras não custodiadas (o equivalente europeu às nossas carteiras de autocustódia).
Os Estados Unidos, embora fragmentados em sua abordagem regulatória, têm visto agências como o Departamento do Tesouro e a FinCEN (Financial Crimes Enforcement Network) proporem regras similares.
O Brasil, ao adotar essa medida de forma centralizada e clara, posiciona-se na vanguarda da regulamentação, mas também acende um debate filosófico importante. Afinal, até que ponto é possível conciliar a natureza descentralizada e pseudônima das criptomoedas com as exigências de um sistema financeiro regulado e transparente?
Para muitos entusiastas da primeira hora, a resposta é que não é possível. A essência do Bitcoin, argumentam, está justamente na possibilidade de realizar transações sem intermediários e sem a necessidade de revelar sua identidade a um terceiro, seja ele uma empresa ou um governo.
Ao exigir a identificação do proprietário da carteira, o regulador estaria, na visão desses críticos, desnaturando o ativo e transformando-o em apenas mais uma classe de investimento tradicional, porém digital.
Por outro lado, defensores da regulamentação argumentam que a integração ao sistema financeiro é o caminho inevitável para a adoção em massa e para a legitimação das criptomoedas como uma classe de ativos séria e confiável. Sem regras claras e sem mecanismos de proteção ao investidor, o mercado permaneceria eternamente à margem, sujeito a golpes, manipulações e à desconfiança do público geral.
O que está em jogo, portanto, não é apenas uma questão técnica ou legal, mas uma definição sobre o futuro das criptomoedas no Brasil. Elas serão uma ferramenta de soberania financeira individual, com todas as responsabilidades e riscos que isso implica? Ou serão um ativo integrado ao sistema, regulado, monitorado e, consequentemente, mais seguro, porém menos livre?
A resposta do Banco Central, ao menos por enquanto, é clara: segurança e integração vêm primeiro. A privacidade, neste novo cenário, torna-se um luxo do passado.
Sobre o autor
André Franco é CEO da casa de análises cripto Boost Research e colunista do Portal do Bitcoin. Analista de criptoativos desde 2017, Franco possui vasta experiência no mercado e já atuou como diretor de Research do MB | Mercado Bitcoin.
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